Esportes que cumprem todas as exigências do Comitê Olímpico Internacional ficam fora dos jogos por conta da superlotação
Por Marília Melhado
Olimpíada de 2008 em Pequim, na China, começa dia 24 de agosto. Para os 24 mil atletas que vão disputar os jogos, trata-se de um sonho realizado. Para outros, o acontecimento representa tristeza por suas modalidades não participarem. Para ser reconhecido e entrar nesse restrito grupo de competidores, é necessário cumprir exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI). Um dos requisitos é que a modalidade seja praticada por homens em no mínimo 75 países e quatro continentes e por mulheres em 40 países e três continentes. Entretanto, muitos cumprem as exigências e ainda assim não são aceitos. O COI apenas admite novos esportes se outros saírem. Caratê, squash, surfe e rúgbi são alguns nessa situação.
Desde 2005 há duas vagas abertas. Caratê e squash foram os mais votados na Comissão Olímpica, mas não tiveram o número mínimo de dois terços dos votantes. “O que faltou foi lobby”, afirma Tiago Cabral, presidente da Associação de Profissionais de Squash do Brasil. Segundo ele, angariar patrocínios fica mais fácil para quem tem a visibilidade proporcionada pelas Olimpíadas. O presidente da Confederação Brasileira de Caratê, Edgar Oliveira, lembra que a arte marcial tem condições de subir ao pódio. “A Olimpíada é um sonho de muitos anos”, garante.
Em situação complicada está o Futsal. Apesar da Federação Internacional de Futebol (FIFA) ser reconhecida pelo COI, não é um esporte olímpico. Segundo Aécio de Borba Vasconcelos, presidente da Confederação Brasileira de Futsal, para que a modalidade entre nas olimpíadas, o COI exige que a Fifa libere 11 jogadores acima de 23 anos para jogar no futebol de campo. “A Fifa não pode ceder porque isso levaria à realização de praticamente uma Copa do Mundo a cada dois anos”, afirma.
---publicada em Folha Universal
quarta-feira, 19 de março de 2008
segunda-feira, 17 de março de 2008
A terra treme: Rossellini em cartaz
Considerado o precursor do cinema moderno, Roberto Rossellini foi diretamente responsável pela inspiração de diretores como Glauber Rocha
Por Marília Melhado
Em 1945, Roberto Rossellini consagrou o cinema moderno europeu com a apresentação do que seria um de seus grandes filmes, Roma, Cidade Aberta. Marco inicial da escola do neo-realismo e aclamado em várias partes do mundo, o filme-manifesto narra a resistência italiana durante a ocupação nazista. Vinícius de Moraes, após assistir à estréia do filme em Nova York, escreveu um artigo afirmando que “Rossellini cumpria a missão primacial de qualquer obra de arte que queira permanecer além de seu tempo: revelá-lo com linguagem própria pelo uso de seus mais sentidos temas”.
O cineasta chegou a ser glorificado nos anos 1960 pelo movimento francês Nouvelle Vague, dos diretores Jean-Luc Godard e François Truffaut, como o pioneiro do neo-realismo italiano. ”Apesar de muitas contestações” – como assinala a professora Mariarosaria Fabris, autora do livro O Neo-realismo Cinematográfico Italiano –, Rossellini “inaugura um testemunho cinematográfico do período da segunda-guerra mundial”.
Fabris explica que o papel dos cineastas neo-realistas era de tornarem-se cronistas do pós-guerra e Rossellini, por sua vez, interessava-se especialmente por retratar situações reais dentro da ficção. Seu roteiro era mais livre, a fim de conceder maior liberdade às cenas.
Depois de concluir por sua Trilogia da Guerra (com as produções Roma, Cidade Aberta, Alemanha, ano zero e Paisá), o diretor se mostrou preocupado com ausência de fé em seu povo, após o final do conflito na Europa. O longa-metragem Stromboli, terra de Dio é um dos mais apreciados dessa fase do autor.
Em 1964, Rossellini rompe com o cinema, anunciando a morte do meio. Como grande experimentador, passou a se decidir pela busca do público através da veiculação de filmes exclusivos para televisão. Seguiu-se uma fase espiritualista, em que ele abdicou da obsessão formal por um cinema de conteúdo pedagógico. O cineasta brasileiro Joel Pizzini explica que o diretor passou a ver a salvação da dignidade do cinema por meio da realização de filmes para o grande público, que fizessem grandes metáforas da humanidade. “O longa-metragem Santo Agostinho (filmado para o canal RAI), por exemplo, é cheio de recados sobre a crise ética”.
A escola Rossellini
“Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei realmente o negócio de idéia na cabeça e câmera na mão”, afirmou Glauber Rocha em seu curta-metragem Di, relembrando o primeiro encontro com o italiano Roberto Rossellini. Glauber recorda o encontro com o pai do movimento cinematográfico neo-realista, fazendo uma clara referência à célebre frase sobre o Cinema Novo.
Joel Pizzini, um dos responsáveis pelo resgate da obra de Glauber, explica que, apesar de se declarar essencialmente ligado ao mito do cineasta russo Sergei Eisenstein, Glauber buscou, no autor de Roma, Cidade Aberta, a alusão necessária para o movimento brasileiro encontrar “a voz do homem”. “A influência de Eisenstein se dá pelo tom épico na obra do Glauber, mas a autoridade de Rossellini trouxe o conteúdo humanista”, entende Pizzini.
A inspiração vinha da intenção de trazer um tom reflexivo aos filmes brasileiros. “Para o Cinema Novo, um movimento que se pretendia revolucionário, não poderia deixar de apreciar os exemplos estrangeiros”, afirma Fabris. Em Barravento, primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, esse diálogo foi confirmado, quando o cineasta afirmou que esse filme não era arte e sim um manifesto.
Acerca da influência de forasteiros, o ex-militante do Cinema Novo Cacá Diegues – em uma mesa de debates no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em fevereiro de 2007 – afirmou que essa busca vinha da necessidade de encontrar alguma reminiscência cinematográfica: “As chanchadas, que nós considerávamos paródias de filmes americanos, não poderiam ter nenhum interesse em ser aquilo que nós desejávamos fazer”.
Mesmo o longa-metragem Terra em Transe, famoso pelo seu caráter contestador, seguia uma onda presente no mundo todo. Segundo Pizzini, o neo-realista argumentava que o Cinema Novo deveria estar mais sintonizado com o que estava acontecendo nas ruas, para compreensão das transformações que aquele ano trazia. Rossellini afirmava que, até aquele momento, apenas Jean-Luc Godard conseguiu retratar esse espírito, em A Chinesa e Week End.
Em sua primeira visita ao Brasil, o cineasta italiano, veio tentar filmar - a convite do autor Josué de Castro - uma versão do livro Geografia da Fome. O projeto não vingou devido à negação de apoio do governo do presidente Jânio Quadros. “Eles alegaram que Rossellini era um cineasta superado e não poderia realizar uma película sobre o livro de Josué de Castro”, conta Pizzini. Sobre o fato, o embaixador Arnaldo Carrilho, chefe da difusão cinematográfica no Itamaraty (1962-64), escreveu que Jânio acreditava que uma obra cinematográfica baseada em Geografia da Fome era “detrimental à imagem do Brasil”.
Segundo as pesquisas de Pizzini, o cineasta francês François Truffaut comentou que o pai do neo-realismo tinha um projeto de filme chamado Brasília. Outros registros ainda apontam que Rossellini tinha intenção de filmar Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre – que considerava uma mensagem do Brasil a um mundo dividido por ódios –, e também de adaptar o romance de Jorge Amado, Capitães de Areia. “Ele sempre tentou filmar no Brasil, mas nunca conseguiu. Na verdade, eu suponho que ele gostaria de filmar o projeto de Brasília, como um amálgama de Jorge Amado, Josué de Castro e Gilberto Freyre”.
Durante uma mesa-redonda sobre Pesquisa em Televisão e Cinema na América Latina, Rossellini defendeu seu ponto de vista de produção de obras “inspiracionais” para a TV e irritou-se com os jovens cineastas brasileiros, que, segundo ele, ainda não tinham delimitado uma estratégia de combate. “Ou se luta, ou não se luta. E para lutar é preciso ter o domínio e a atualização das informações. (Os jovens brasileiros) perdem-se numa linguagem ideológica velha, gasta, repetida e sem nenhuma eficácia diante dos verdadeiros problemas políticos e sociais de hoje”, argumentava Rossellini para o escritor brasileiro Mario Chamie. “Rossellini admirava o Cinema Novo, mas achava que o brasileiro ainda estava preso a um certo dirigismo ideológico“, recorda Chamie.
Neste ano, Joel Pizzini termina um curta-metragem sobre a vida e a passagem do cineasta italiano pelo Brasil. A produção já tem nome definido, A morte do pai, e é baseada num relato inédito do rebento Renzo Rossellini. Para o segundo semestre de 2007, também acontecerá uma mostra no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e do Rio de Janeiro, sobre a obra televisiva do mestre neo-realista. Steve Berg, curador da exposição, conta que a data ainda não está definida, mas garante que o evento está sendo organizado com muito esmero, “até pela importância que o Rossellini tem no cinema brasileiro, como idealizador do plano-seqüência (cena longa, sem corte), muito usada por Glauber Rocha”.
-----publicada em Revista Cult.
Por Marília Melhado
Em 1945, Roberto Rossellini consagrou o cinema moderno europeu com a apresentação do que seria um de seus grandes filmes, Roma, Cidade Aberta. Marco inicial da escola do neo-realismo e aclamado em várias partes do mundo, o filme-manifesto narra a resistência italiana durante a ocupação nazista. Vinícius de Moraes, após assistir à estréia do filme em Nova York, escreveu um artigo afirmando que “Rossellini cumpria a missão primacial de qualquer obra de arte que queira permanecer além de seu tempo: revelá-lo com linguagem própria pelo uso de seus mais sentidos temas”.
O cineasta chegou a ser glorificado nos anos 1960 pelo movimento francês Nouvelle Vague, dos diretores Jean-Luc Godard e François Truffaut, como o pioneiro do neo-realismo italiano. ”Apesar de muitas contestações” – como assinala a professora Mariarosaria Fabris, autora do livro O Neo-realismo Cinematográfico Italiano –, Rossellini “inaugura um testemunho cinematográfico do período da segunda-guerra mundial”.
Fabris explica que o papel dos cineastas neo-realistas era de tornarem-se cronistas do pós-guerra e Rossellini, por sua vez, interessava-se especialmente por retratar situações reais dentro da ficção. Seu roteiro era mais livre, a fim de conceder maior liberdade às cenas.
Depois de concluir por sua Trilogia da Guerra (com as produções Roma, Cidade Aberta, Alemanha, ano zero e Paisá), o diretor se mostrou preocupado com ausência de fé em seu povo, após o final do conflito na Europa. O longa-metragem Stromboli, terra de Dio é um dos mais apreciados dessa fase do autor.
Em 1964, Rossellini rompe com o cinema, anunciando a morte do meio. Como grande experimentador, passou a se decidir pela busca do público através da veiculação de filmes exclusivos para televisão. Seguiu-se uma fase espiritualista, em que ele abdicou da obsessão formal por um cinema de conteúdo pedagógico. O cineasta brasileiro Joel Pizzini explica que o diretor passou a ver a salvação da dignidade do cinema por meio da realização de filmes para o grande público, que fizessem grandes metáforas da humanidade. “O longa-metragem Santo Agostinho (filmado para o canal RAI), por exemplo, é cheio de recados sobre a crise ética”.
A escola Rossellini
“Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei realmente o negócio de idéia na cabeça e câmera na mão”, afirmou Glauber Rocha em seu curta-metragem Di, relembrando o primeiro encontro com o italiano Roberto Rossellini. Glauber recorda o encontro com o pai do movimento cinematográfico neo-realista, fazendo uma clara referência à célebre frase sobre o Cinema Novo.
Joel Pizzini, um dos responsáveis pelo resgate da obra de Glauber, explica que, apesar de se declarar essencialmente ligado ao mito do cineasta russo Sergei Eisenstein, Glauber buscou, no autor de Roma, Cidade Aberta, a alusão necessária para o movimento brasileiro encontrar “a voz do homem”. “A influência de Eisenstein se dá pelo tom épico na obra do Glauber, mas a autoridade de Rossellini trouxe o conteúdo humanista”, entende Pizzini.
A inspiração vinha da intenção de trazer um tom reflexivo aos filmes brasileiros. “Para o Cinema Novo, um movimento que se pretendia revolucionário, não poderia deixar de apreciar os exemplos estrangeiros”, afirma Fabris. Em Barravento, primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, esse diálogo foi confirmado, quando o cineasta afirmou que esse filme não era arte e sim um manifesto.
Acerca da influência de forasteiros, o ex-militante do Cinema Novo Cacá Diegues – em uma mesa de debates no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em fevereiro de 2007 – afirmou que essa busca vinha da necessidade de encontrar alguma reminiscência cinematográfica: “As chanchadas, que nós considerávamos paródias de filmes americanos, não poderiam ter nenhum interesse em ser aquilo que nós desejávamos fazer”.
Mesmo o longa-metragem Terra em Transe, famoso pelo seu caráter contestador, seguia uma onda presente no mundo todo. Segundo Pizzini, o neo-realista argumentava que o Cinema Novo deveria estar mais sintonizado com o que estava acontecendo nas ruas, para compreensão das transformações que aquele ano trazia. Rossellini afirmava que, até aquele momento, apenas Jean-Luc Godard conseguiu retratar esse espírito, em A Chinesa e Week End.
Em sua primeira visita ao Brasil, o cineasta italiano, veio tentar filmar - a convite do autor Josué de Castro - uma versão do livro Geografia da Fome. O projeto não vingou devido à negação de apoio do governo do presidente Jânio Quadros. “Eles alegaram que Rossellini era um cineasta superado e não poderia realizar uma película sobre o livro de Josué de Castro”, conta Pizzini. Sobre o fato, o embaixador Arnaldo Carrilho, chefe da difusão cinematográfica no Itamaraty (1962-64), escreveu que Jânio acreditava que uma obra cinematográfica baseada em Geografia da Fome era “detrimental à imagem do Brasil”.
Segundo as pesquisas de Pizzini, o cineasta francês François Truffaut comentou que o pai do neo-realismo tinha um projeto de filme chamado Brasília. Outros registros ainda apontam que Rossellini tinha intenção de filmar Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre – que considerava uma mensagem do Brasil a um mundo dividido por ódios –, e também de adaptar o romance de Jorge Amado, Capitães de Areia. “Ele sempre tentou filmar no Brasil, mas nunca conseguiu. Na verdade, eu suponho que ele gostaria de filmar o projeto de Brasília, como um amálgama de Jorge Amado, Josué de Castro e Gilberto Freyre”.
Durante uma mesa-redonda sobre Pesquisa em Televisão e Cinema na América Latina, Rossellini defendeu seu ponto de vista de produção de obras “inspiracionais” para a TV e irritou-se com os jovens cineastas brasileiros, que, segundo ele, ainda não tinham delimitado uma estratégia de combate. “Ou se luta, ou não se luta. E para lutar é preciso ter o domínio e a atualização das informações. (Os jovens brasileiros) perdem-se numa linguagem ideológica velha, gasta, repetida e sem nenhuma eficácia diante dos verdadeiros problemas políticos e sociais de hoje”, argumentava Rossellini para o escritor brasileiro Mario Chamie. “Rossellini admirava o Cinema Novo, mas achava que o brasileiro ainda estava preso a um certo dirigismo ideológico“, recorda Chamie.
Neste ano, Joel Pizzini termina um curta-metragem sobre a vida e a passagem do cineasta italiano pelo Brasil. A produção já tem nome definido, A morte do pai, e é baseada num relato inédito do rebento Renzo Rossellini. Para o segundo semestre de 2007, também acontecerá uma mostra no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e do Rio de Janeiro, sobre a obra televisiva do mestre neo-realista. Steve Berg, curador da exposição, conta que a data ainda não está definida, mas garante que o evento está sendo organizado com muito esmero, “até pela importância que o Rossellini tem no cinema brasileiro, como idealizador do plano-seqüência (cena longa, sem corte), muito usada por Glauber Rocha”.
-----publicada em Revista Cult.
domingo, 16 de março de 2008
Zé Celso: Filho de Baco
Aos 70 anos, Zé Celso desafia os valores e a moral com seu alegórico teatro dionisíaco.
Por Marília Melhado
Muito benquisto, principalmente pelos taxistas da região do Bixiga, em São Paulo, Zé Celso é mais do que uma figura emblemática. "Ele tem o Q.I. acima da média, é um gênio", afirma um motorista, "o cara é amigo do Suplicy e do Caetano Veloso, consegue falar com o presidente a hora que ele quiser", garante.
Mais de quatro décadas de espetáculos e polêmicas marcam a história de um dos mais famosos grupos teatrais do Brasil. Capitaneado pelo diretor Zé Celso Martinez Côrrea, o Teatro Oficina deixa marcas por onde passa. "Os Sertões", clássico de Euclides da Cunha, é a atual menina dos olhos do diretor. Apresentações do espetáculo acontecem desde 2001, passando até mesmo por palcos estrangeiros como o do Volksbühne, em Berlim.
A adaptação do livro foi dividida em 5 partes: A Terra, O homem parte I, O Homem parte II, A Luta parte I e A Luta parte II. Somadas, o espetáculo resulta em mais de 26 horas. De quarta à domingo são ensaios e espetáculos das 17h às 00h. Eventualmente, o ensaio do Oficina pode chegar até às 5 da manhã. Zé tem consciência de sua exigência e conta que muitos atores abdicaram de seus antigos trabalhos para se dedicarem ao Oficina em tempo integral. "É um processo muito cruel. Exige muita concentração e dedicação ´transumana´". O grupo atualmente conta com atores que antes se dedicavam ao ensino da capoeira ou à prática da medicina.
Durante o mês de aniversário de Zé Celso - que completa 70 anos em 2007 -, seu teatro hoje também conhecido como Uzyna Uzona, se concentra na gravação de um longa-metragem. Zé explica que seu grupo não poderia perder a chance de documentar essa obra para o mundo. "A revolução digital, potencializa o ator, o teatro e a peça. É um momento importante, nobre e bonito", resume.
Chafurdando na vida
Quando se está do lado de fora do Oficina, esperando o portão (e não a habitual cortina) se abrir, ouve-se tambores, cantorias e um certo frio na barriga arrebata o espectador, premeditando o baque que irá suceder. De repente, um estrondo. A porta se abre e corpos insanos se espalham pelo lugar num tipo de apoteose transviada. "Atoar para poder voar", (atoar mesmo, não atuar!), é o mantra repetido freneticamente. O teatro invade a calçada e a rua Jaceguai, enquanto o público adentra o universo que perverte a ordem e as regras da sociedade.
Louvações aos orixás, deuses e personagens. Dionísio, Oswald de Andrade, Iemanjá. São inúmeras as referências culturais impressas no cotidiano daquele espaço. O espectador é convidado a participar das ações cênicas como saída de suas lástimas, conforme expõe Zé Celso: "Pessoas que são marcadas no processo social, vão ao teatro não para se lastimarem ou submeterem. Ali, em vez de recalcados, seus tabus são coroados e transformados em totens", garante.
Não só o público é exposto a um novo processo de experiência de vida. Zé acredita que o ator precisa se colocar como sujeito e objeto de experiências distintas. "É preciso estar disposto a passar por um processo de 'descabaçamento'. Você tem que chafurdar na vida e experimentar de tudo para poder exprimir alguma coisa a mais".
Ericson Pires, em sua tese de mestrado pela PUC-Rio, analisa a trajetória desta Uzyna de Corpos, e esclarece que assim como são como cultos dionisíacos que ameaçavam a ordem e os valores da pólis grega, "a experiência teatral, neste sentido, se aproxima da carnavalização que irrompe e rompe com o cotidiano da cidade. Sendo assim, o teatro se torna o espaço de indisciplina dos devires corpos em oposição complementar a vida ordeira das cidades".
A vida dentro e fora da Uzyna
"O Oficina não é uma família", expressa Zé Celso, quando questionado ao modo como o grupo se relaciona. "Procuro que seja uma associação de artistas e técnicos do Teatro Oficina - Uzyna Uzona. Mesmo que as pessoas tenham relações sexuais e afetivas entre elas, não é uma família. Uma família é uma coisa muito fechada. Já uma associação, é aberta a outras pessoas que participarão por um tempo, depois se vão", pontua.
O cotidiano dos atores já é amplamente conhecido, principalmente por quem freqüenta as redondezas. O teatro tem um sistema de permuta com o restaurante Piolin, habitual recinto da classe artística. Em dias de comemoração, o grupo também pode ser encontrado no tradicional Sujinho, vulgo "bar das putas". As noites de Zé, dentro e fora desses recintos, são sempre regadas pelo seu combustível predileto, o vinho. Mas, garante que os mais jovens costumam freqüentar mais festas do que ele, "preciso poupar as minhas energias".
Claro que nem todo mundo vê Zé Celso com bons olhos, e ele também não faz questão de agradar. Bárbara Heliodora, diretora e crítica de teatro, é um de seus desafetos. O diretor fala que Heliodora é uma empregada da burguesia, "Ela é o que se chamava antigamente de chaperonne, uma mulher que cuidava das crianças, lhes ensinando moral e bons costumes e as levava para espetáculos recomendados pela igreja". Bárbara Heliodora, quando procurada para falar de Zé Celso, foi taxativa em seu e-mail e respondeu que uma entrevista sobre o assunto seria "totalmente impossível".
Zé lembra que existem grandes estudiosos do teatro que sabem jogar luz em seu trabalho, vendo coisas que ele mesmo não percebia. Mas que outros críticos não admitem a existência de teatros como o Oficina, servem à classe alta, garantindo peças onde não há riscos de se encontrar cadeiras desconfortáveis ou cenas de nudismo. "É um prolongamento da novela. Um teatro feito com poucos atores, em peças de costumes para a terceira idade e que cobram muito caro. Tudo em palco italiano. Um teatro que não tem importância cultural ou deixa vestígios. Pode ser visto por milhões de pessoas, e não impressiona culturalmente a cidade, não toca em nada".
----- publicada em site Revista Cult
Por Marília Melhado
Muito benquisto, principalmente pelos taxistas da região do Bixiga, em São Paulo, Zé Celso é mais do que uma figura emblemática. "Ele tem o Q.I. acima da média, é um gênio", afirma um motorista, "o cara é amigo do Suplicy e do Caetano Veloso, consegue falar com o presidente a hora que ele quiser", garante.
Mais de quatro décadas de espetáculos e polêmicas marcam a história de um dos mais famosos grupos teatrais do Brasil. Capitaneado pelo diretor Zé Celso Martinez Côrrea, o Teatro Oficina deixa marcas por onde passa. "Os Sertões", clássico de Euclides da Cunha, é a atual menina dos olhos do diretor. Apresentações do espetáculo acontecem desde 2001, passando até mesmo por palcos estrangeiros como o do Volksbühne, em Berlim.
A adaptação do livro foi dividida em 5 partes: A Terra, O homem parte I, O Homem parte II, A Luta parte I e A Luta parte II. Somadas, o espetáculo resulta em mais de 26 horas. De quarta à domingo são ensaios e espetáculos das 17h às 00h. Eventualmente, o ensaio do Oficina pode chegar até às 5 da manhã. Zé tem consciência de sua exigência e conta que muitos atores abdicaram de seus antigos trabalhos para se dedicarem ao Oficina em tempo integral. "É um processo muito cruel. Exige muita concentração e dedicação ´transumana´". O grupo atualmente conta com atores que antes se dedicavam ao ensino da capoeira ou à prática da medicina.
Durante o mês de aniversário de Zé Celso - que completa 70 anos em 2007 -, seu teatro hoje também conhecido como Uzyna Uzona, se concentra na gravação de um longa-metragem. Zé explica que seu grupo não poderia perder a chance de documentar essa obra para o mundo. "A revolução digital, potencializa o ator, o teatro e a peça. É um momento importante, nobre e bonito", resume.
Chafurdando na vida
Quando se está do lado de fora do Oficina, esperando o portão (e não a habitual cortina) se abrir, ouve-se tambores, cantorias e um certo frio na barriga arrebata o espectador, premeditando o baque que irá suceder. De repente, um estrondo. A porta se abre e corpos insanos se espalham pelo lugar num tipo de apoteose transviada. "Atoar para poder voar", (atoar mesmo, não atuar!), é o mantra repetido freneticamente. O teatro invade a calçada e a rua Jaceguai, enquanto o público adentra o universo que perverte a ordem e as regras da sociedade.
Louvações aos orixás, deuses e personagens. Dionísio, Oswald de Andrade, Iemanjá. São inúmeras as referências culturais impressas no cotidiano daquele espaço. O espectador é convidado a participar das ações cênicas como saída de suas lástimas, conforme expõe Zé Celso: "Pessoas que são marcadas no processo social, vão ao teatro não para se lastimarem ou submeterem. Ali, em vez de recalcados, seus tabus são coroados e transformados em totens", garante.
Não só o público é exposto a um novo processo de experiência de vida. Zé acredita que o ator precisa se colocar como sujeito e objeto de experiências distintas. "É preciso estar disposto a passar por um processo de 'descabaçamento'. Você tem que chafurdar na vida e experimentar de tudo para poder exprimir alguma coisa a mais".
Ericson Pires, em sua tese de mestrado pela PUC-Rio, analisa a trajetória desta Uzyna de Corpos, e esclarece que assim como são como cultos dionisíacos que ameaçavam a ordem e os valores da pólis grega, "a experiência teatral, neste sentido, se aproxima da carnavalização que irrompe e rompe com o cotidiano da cidade. Sendo assim, o teatro se torna o espaço de indisciplina dos devires corpos em oposição complementar a vida ordeira das cidades".
A vida dentro e fora da Uzyna
"O Oficina não é uma família", expressa Zé Celso, quando questionado ao modo como o grupo se relaciona. "Procuro que seja uma associação de artistas e técnicos do Teatro Oficina - Uzyna Uzona. Mesmo que as pessoas tenham relações sexuais e afetivas entre elas, não é uma família. Uma família é uma coisa muito fechada. Já uma associação, é aberta a outras pessoas que participarão por um tempo, depois se vão", pontua.
O cotidiano dos atores já é amplamente conhecido, principalmente por quem freqüenta as redondezas. O teatro tem um sistema de permuta com o restaurante Piolin, habitual recinto da classe artística. Em dias de comemoração, o grupo também pode ser encontrado no tradicional Sujinho, vulgo "bar das putas". As noites de Zé, dentro e fora desses recintos, são sempre regadas pelo seu combustível predileto, o vinho. Mas, garante que os mais jovens costumam freqüentar mais festas do que ele, "preciso poupar as minhas energias".
Claro que nem todo mundo vê Zé Celso com bons olhos, e ele também não faz questão de agradar. Bárbara Heliodora, diretora e crítica de teatro, é um de seus desafetos. O diretor fala que Heliodora é uma empregada da burguesia, "Ela é o que se chamava antigamente de chaperonne, uma mulher que cuidava das crianças, lhes ensinando moral e bons costumes e as levava para espetáculos recomendados pela igreja". Bárbara Heliodora, quando procurada para falar de Zé Celso, foi taxativa em seu e-mail e respondeu que uma entrevista sobre o assunto seria "totalmente impossível".
Zé lembra que existem grandes estudiosos do teatro que sabem jogar luz em seu trabalho, vendo coisas que ele mesmo não percebia. Mas que outros críticos não admitem a existência de teatros como o Oficina, servem à classe alta, garantindo peças onde não há riscos de se encontrar cadeiras desconfortáveis ou cenas de nudismo. "É um prolongamento da novela. Um teatro feito com poucos atores, em peças de costumes para a terceira idade e que cobram muito caro. Tudo em palco italiano. Um teatro que não tem importância cultural ou deixa vestígios. Pode ser visto por milhões de pessoas, e não impressiona culturalmente a cidade, não toca em nada".
----- publicada em site Revista Cult
Abandonados
Por Marília Melhado
Não se sabe ao certo quantos eles são no País, afinal não têm nome, nem identidade conhecida e, o pior, não têm um passado. Invisíveis para a maioria dos brasileiros, eles estão nos leitos dos hospitais ou presos a cadeiras de rodas, definhando num desespero silencioso. Avenida Guapira, número 2.674, este é um dos endereços que abrigam os esquecidos, doentes que ninguém se lembra mais.
O Hospital Geriátrico e de Convalescentes D. Pedro II, fundado há 97 anos na zona norte de São Paulo, tem 500 internos. Para a maioria destes, o local é a única referência de lar: vivem há quatro, dez, trinta anos em meio às árvores e aos prédios de arquitetura antiga, com pintura desgastada. Todos chegaram transferidos de outras casas de saúde. Alguns têm família e recebem visitas, mas outros foram abandonados por filhos, sobrinhos, mães. Em situação mais difícil estão os internos sem identidade. Pacientes sem memória da própria vida. Ninguém sabe de onde vieram ou se alguém os procura. Sofrem pelas conseqüências de mal de Alzheimer, acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crâniano.
Desde jovem, Lourdes Faustino fugia de casa para morar nas ruas. Epiléptica e deficiente mental, ela sempre voltava à casa da irmã mais velha, Maria Madalena. Em 1999, Lourdes não retornou. Madalena iniciou uma busca que parecia ser em vão. “Todo mundo me dizia que tinha visto ela em algum lugar, mas quando chegava para buscá-la, não a encontrava”, recorda. Mal sabia que sua irmã estava em coma, internada no hospital Dom Pedro II, por causa de um ferimento profundo no crânio, fruto de um disparo de revólver. Depois de meses inerte, Lourdes retomou a consciência, pronunciando algumas palavras, entre elas, o nome da irmã, Madalena. Após nove anos de dúvida, a dona de casa finalmente rec beu notícias concretas. Um vizinho reconheceu Lourdes no Hospital Dom Pedro II e entregou uma foto dela à Madalena. “Reencontrar minha irmã foi uma alegria. Choramos muito”, lembra.
Hoje, Lourdes está impossibilitada de andar. Numa cadeira de rodas, ela guarda marcas da longa passagem pelas ruas. São sinais de agressões espalhados pelas pernas, braços e cabeça. “Polícia, não quero nem saber”, diz Lourdes, em meio a um mar de confusões verbais. As irmãs são companheiras desde os tempos de criança. Madalena sempre zelou pela saúde da irmã especial: “Quando Lourdes tinha alguma recaída, era eu que a levava para o hospital. Nunca bati nela, cuidava com amor”, conta Madalena, “Ela saía de casa e eu ficava muito preocupada. Para mim, sempre tinha alguém judiando dela na rua”, conta.
Até onde a memória alcança
“Adeus, amor” é o único verso da música “E Voltarei”, de Altemar Dutra, que José Joaquim de Moura consegue lembrar. Ex-pedreiro e ex-cozinheiro, está sentado à mesa com colegas – todos em cadeiras de rodas – paralisados olhando um para o rosto do outro. A fala repleta de pausas e suspiros resgata o que ainda lhe resta do passado. Lembra-se de sua irmã Bernadete que era proprietária de um bar, onde Joaquim cozinhava. “Fazia almoço para a peãozada”, recorda o idoso de aparentes 70 anos. “Como o senhor chegou aqui no hospital?”. Pausa. “Não lembro”. “Aqui eu não faço nada. Fico sentado quieto até me recolherem para dormir”, conta.
Joaquim então puxa assunto sobre a vontade de ajudar a fazer uma reforma na casa de uma das funcionárias. Não há sorriso enquanto é fotografado. Até surgir uma nova lembrança. “Minha sobrinha Fabiana se casou com um pastor de uma igreja que ficava na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio”. A assistente social alegra-se pela notícia. “É uma nova pista sobre sua família. Ele nunca tinha dito isso antes”, afirma Eliane Pereira da Silva. O almoço finalmente é servido: arroz, feijão e macarrão.
A partir de pequenas lembranças, assistentes sociais fazem um trabalho de detetive para localizar familiares ou registro das pessoas – quase – esquecidas no mundo. Todas as possibilidades são tentadas: análise de boletim de ocorrências, impressões digitais, publicação das fotografias dos pacientes no site da Secretaria de Saúde. Eliane e Márcia Tomé, assistentes sociais do Dom Pedro II, já presenciaram diversos encontros e desencontros em seus anos de profissão. “Leva tempo até localizar os laços familiares de alguém”, relata Márcia. “A maior parte dos pacientes gosta de reafirmar que têm família, como forma de defesa, se resguardando de um sentimento de exclusão”, analisa Sueli Luciano Pires, diretora do hospital.
Andando pelos corredores do D.Pedro II, os pacientes cobram as assistentes por um sonhado reencontro com familiares: “Meu sobrinho está vindo me buscar?”, pergunta uma senhora de cadeira de rodas. Diante da resposta afirmativa, ela se alegra: “Ai, mas que maravilha!”.
Sem números oficiais
A Secretaria de Saúde de São Paulo disponibilizou na internet imagens e informações de alguns dos pacientes não identificados, com o intuito de ajudar na localização de parentes e conhecidos. Os dados podem ser acessados no endereço http://saude.sp.gov.br/.
Desde que o projeto começou há dois anos, dos 184 pacientes que tiveram as informações divulgadas, 121 foram localizados pelas famílias. Não existe, em todo o País, um levantamento oficial do número de pacientes sem identidade em hospitais. Só no Dom Pedro II são 40 pacientes desconhecidos, e outros 100 identificados que nunca conseguiram localizar seus familiares por conta de falhas na memória. Para o diretor estadual de saúde, Ricardo Tardelli, a ferramenta deve ser utilizada em todo e qualquer caso que o serviço social definir como necessário para a divulgação. “Acho que o site não é usado plenamente, talvez porque ainda não o descobriram”, analisa Tardelli.
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde de São Paulo, não há projetos de acompanhamento para os pacientes não identificados depois de receberem alta do tratamento. Não há assistência nem mesmo para os que não têm documentos ou não sabem de onde vieram.
Não se sabe ao certo quantos eles são no País, afinal não têm nome, nem identidade conhecida e, o pior, não têm um passado. Invisíveis para a maioria dos brasileiros, eles estão nos leitos dos hospitais ou presos a cadeiras de rodas, definhando num desespero silencioso. Avenida Guapira, número 2.674, este é um dos endereços que abrigam os esquecidos, doentes que ninguém se lembra mais.
O Hospital Geriátrico e de Convalescentes D. Pedro II, fundado há 97 anos na zona norte de São Paulo, tem 500 internos. Para a maioria destes, o local é a única referência de lar: vivem há quatro, dez, trinta anos em meio às árvores e aos prédios de arquitetura antiga, com pintura desgastada. Todos chegaram transferidos de outras casas de saúde. Alguns têm família e recebem visitas, mas outros foram abandonados por filhos, sobrinhos, mães. Em situação mais difícil estão os internos sem identidade. Pacientes sem memória da própria vida. Ninguém sabe de onde vieram ou se alguém os procura. Sofrem pelas conseqüências de mal de Alzheimer, acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crâniano.
Desde jovem, Lourdes Faustino fugia de casa para morar nas ruas. Epiléptica e deficiente mental, ela sempre voltava à casa da irmã mais velha, Maria Madalena. Em 1999, Lourdes não retornou. Madalena iniciou uma busca que parecia ser em vão. “Todo mundo me dizia que tinha visto ela em algum lugar, mas quando chegava para buscá-la, não a encontrava”, recorda. Mal sabia que sua irmã estava em coma, internada no hospital Dom Pedro II, por causa de um ferimento profundo no crânio, fruto de um disparo de revólver. Depois de meses inerte, Lourdes retomou a consciência, pronunciando algumas palavras, entre elas, o nome da irmã, Madalena. Após nove anos de dúvida, a dona de casa finalmente rec beu notícias concretas. Um vizinho reconheceu Lourdes no Hospital Dom Pedro II e entregou uma foto dela à Madalena. “Reencontrar minha irmã foi uma alegria. Choramos muito”, lembra.
Hoje, Lourdes está impossibilitada de andar. Numa cadeira de rodas, ela guarda marcas da longa passagem pelas ruas. São sinais de agressões espalhados pelas pernas, braços e cabeça. “Polícia, não quero nem saber”, diz Lourdes, em meio a um mar de confusões verbais. As irmãs são companheiras desde os tempos de criança. Madalena sempre zelou pela saúde da irmã especial: “Quando Lourdes tinha alguma recaída, era eu que a levava para o hospital. Nunca bati nela, cuidava com amor”, conta Madalena, “Ela saía de casa e eu ficava muito preocupada. Para mim, sempre tinha alguém judiando dela na rua”, conta.
Até onde a memória alcança
“Adeus, amor” é o único verso da música “E Voltarei”, de Altemar Dutra, que José Joaquim de Moura consegue lembrar. Ex-pedreiro e ex-cozinheiro, está sentado à mesa com colegas – todos em cadeiras de rodas – paralisados olhando um para o rosto do outro. A fala repleta de pausas e suspiros resgata o que ainda lhe resta do passado. Lembra-se de sua irmã Bernadete que era proprietária de um bar, onde Joaquim cozinhava. “Fazia almoço para a peãozada”, recorda o idoso de aparentes 70 anos. “Como o senhor chegou aqui no hospital?”. Pausa. “Não lembro”. “Aqui eu não faço nada. Fico sentado quieto até me recolherem para dormir”, conta.
Joaquim então puxa assunto sobre a vontade de ajudar a fazer uma reforma na casa de uma das funcionárias. Não há sorriso enquanto é fotografado. Até surgir uma nova lembrança. “Minha sobrinha Fabiana se casou com um pastor de uma igreja que ficava na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio”. A assistente social alegra-se pela notícia. “É uma nova pista sobre sua família. Ele nunca tinha dito isso antes”, afirma Eliane Pereira da Silva. O almoço finalmente é servido: arroz, feijão e macarrão.
A partir de pequenas lembranças, assistentes sociais fazem um trabalho de detetive para localizar familiares ou registro das pessoas – quase – esquecidas no mundo. Todas as possibilidades são tentadas: análise de boletim de ocorrências, impressões digitais, publicação das fotografias dos pacientes no site da Secretaria de Saúde. Eliane e Márcia Tomé, assistentes sociais do Dom Pedro II, já presenciaram diversos encontros e desencontros em seus anos de profissão. “Leva tempo até localizar os laços familiares de alguém”, relata Márcia. “A maior parte dos pacientes gosta de reafirmar que têm família, como forma de defesa, se resguardando de um sentimento de exclusão”, analisa Sueli Luciano Pires, diretora do hospital.
Andando pelos corredores do D.Pedro II, os pacientes cobram as assistentes por um sonhado reencontro com familiares: “Meu sobrinho está vindo me buscar?”, pergunta uma senhora de cadeira de rodas. Diante da resposta afirmativa, ela se alegra: “Ai, mas que maravilha!”.
Sem números oficiais
A Secretaria de Saúde de São Paulo disponibilizou na internet imagens e informações de alguns dos pacientes não identificados, com o intuito de ajudar na localização de parentes e conhecidos. Os dados podem ser acessados no endereço http://saude.sp.gov.br/.
Desde que o projeto começou há dois anos, dos 184 pacientes que tiveram as informações divulgadas, 121 foram localizados pelas famílias. Não existe, em todo o País, um levantamento oficial do número de pacientes sem identidade em hospitais. Só no Dom Pedro II são 40 pacientes desconhecidos, e outros 100 identificados que nunca conseguiram localizar seus familiares por conta de falhas na memória. Para o diretor estadual de saúde, Ricardo Tardelli, a ferramenta deve ser utilizada em todo e qualquer caso que o serviço social definir como necessário para a divulgação. “Acho que o site não é usado plenamente, talvez porque ainda não o descobriram”, analisa Tardelli.
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde de São Paulo, não há projetos de acompanhamento para os pacientes não identificados depois de receberem alta do tratamento. Não há assistência nem mesmo para os que não têm documentos ou não sabem de onde vieram.
-------publicada em Folha Universal
foto: Dárcio de Jesus
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