Por Marília Melhado
Não se sabe ao certo quantos eles são no País, afinal não têm nome, nem identidade conhecida e, o pior, não têm um passado. Invisíveis para a maioria dos brasileiros, eles estão nos leitos dos hospitais ou presos a cadeiras de rodas, definhando num desespero silencioso. Avenida Guapira, número 2.674, este é um dos endereços que abrigam os esquecidos, doentes que ninguém se lembra mais.
O Hospital Geriátrico e de Convalescentes D. Pedro II, fundado há 97 anos na zona norte de São Paulo, tem 500 internos. Para a maioria destes, o local é a única referência de lar: vivem há quatro, dez, trinta anos em meio às árvores e aos prédios de arquitetura antiga, com pintura desgastada. Todos chegaram transferidos de outras casas de saúde. Alguns têm família e recebem visitas, mas outros foram abandonados por filhos, sobrinhos, mães. Em situação mais difícil estão os internos sem identidade. Pacientes sem memória da própria vida. Ninguém sabe de onde vieram ou se alguém os procura. Sofrem pelas conseqüências de mal de Alzheimer, acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crâniano.
Desde jovem, Lourdes Faustino fugia de casa para morar nas ruas. Epiléptica e deficiente mental, ela sempre voltava à casa da irmã mais velha, Maria Madalena. Em 1999, Lourdes não retornou. Madalena iniciou uma busca que parecia ser em vão. “Todo mundo me dizia que tinha visto ela em algum lugar, mas quando chegava para buscá-la, não a encontrava”, recorda. Mal sabia que sua irmã estava em coma, internada no hospital Dom Pedro II, por causa de um ferimento profundo no crânio, fruto de um disparo de revólver. Depois de meses inerte, Lourdes retomou a consciência, pronunciando algumas palavras, entre elas, o nome da irmã, Madalena. Após nove anos de dúvida, a dona de casa finalmente rec beu notícias concretas. Um vizinho reconheceu Lourdes no Hospital Dom Pedro II e entregou uma foto dela à Madalena. “Reencontrar minha irmã foi uma alegria. Choramos muito”, lembra.
Hoje, Lourdes está impossibilitada de andar. Numa cadeira de rodas, ela guarda marcas da longa passagem pelas ruas. São sinais de agressões espalhados pelas pernas, braços e cabeça. “Polícia, não quero nem saber”, diz Lourdes, em meio a um mar de confusões verbais. As irmãs são companheiras desde os tempos de criança. Madalena sempre zelou pela saúde da irmã especial: “Quando Lourdes tinha alguma recaída, era eu que a levava para o hospital. Nunca bati nela, cuidava com amor”, conta Madalena, “Ela saía de casa e eu ficava muito preocupada. Para mim, sempre tinha alguém judiando dela na rua”, conta.
Até onde a memória alcança
“Adeus, amor” é o único verso da música “E Voltarei”, de Altemar Dutra, que José Joaquim de Moura consegue lembrar. Ex-pedreiro e ex-cozinheiro, está sentado à mesa com colegas – todos em cadeiras de rodas – paralisados olhando um para o rosto do outro. A fala repleta de pausas e suspiros resgata o que ainda lhe resta do passado. Lembra-se de sua irmã Bernadete que era proprietária de um bar, onde Joaquim cozinhava. “Fazia almoço para a peãozada”, recorda o idoso de aparentes 70 anos. “Como o senhor chegou aqui no hospital?”. Pausa. “Não lembro”. “Aqui eu não faço nada. Fico sentado quieto até me recolherem para dormir”, conta.
Joaquim então puxa assunto sobre a vontade de ajudar a fazer uma reforma na casa de uma das funcionárias. Não há sorriso enquanto é fotografado. Até surgir uma nova lembrança. “Minha sobrinha Fabiana se casou com um pastor de uma igreja que ficava na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio”. A assistente social alegra-se pela notícia. “É uma nova pista sobre sua família. Ele nunca tinha dito isso antes”, afirma Eliane Pereira da Silva. O almoço finalmente é servido: arroz, feijão e macarrão.
A partir de pequenas lembranças, assistentes sociais fazem um trabalho de detetive para localizar familiares ou registro das pessoas – quase – esquecidas no mundo. Todas as possibilidades são tentadas: análise de boletim de ocorrências, impressões digitais, publicação das fotografias dos pacientes no site da Secretaria de Saúde. Eliane e Márcia Tomé, assistentes sociais do Dom Pedro II, já presenciaram diversos encontros e desencontros em seus anos de profissão. “Leva tempo até localizar os laços familiares de alguém”, relata Márcia. “A maior parte dos pacientes gosta de reafirmar que têm família, como forma de defesa, se resguardando de um sentimento de exclusão”, analisa Sueli Luciano Pires, diretora do hospital.
Andando pelos corredores do D.Pedro II, os pacientes cobram as assistentes por um sonhado reencontro com familiares: “Meu sobrinho está vindo me buscar?”, pergunta uma senhora de cadeira de rodas. Diante da resposta afirmativa, ela se alegra: “Ai, mas que maravilha!”.
Sem números oficiais
A Secretaria de Saúde de São Paulo disponibilizou na internet imagens e informações de alguns dos pacientes não identificados, com o intuito de ajudar na localização de parentes e conhecidos. Os dados podem ser acessados no endereço http://saude.sp.gov.br/.
Desde que o projeto começou há dois anos, dos 184 pacientes que tiveram as informações divulgadas, 121 foram localizados pelas famílias. Não existe, em todo o País, um levantamento oficial do número de pacientes sem identidade em hospitais. Só no Dom Pedro II são 40 pacientes desconhecidos, e outros 100 identificados que nunca conseguiram localizar seus familiares por conta de falhas na memória. Para o diretor estadual de saúde, Ricardo Tardelli, a ferramenta deve ser utilizada em todo e qualquer caso que o serviço social definir como necessário para a divulgação. “Acho que o site não é usado plenamente, talvez porque ainda não o descobriram”, analisa Tardelli.
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde de São Paulo, não há projetos de acompanhamento para os pacientes não identificados depois de receberem alta do tratamento. Não há assistência nem mesmo para os que não têm documentos ou não sabem de onde vieram.
Não se sabe ao certo quantos eles são no País, afinal não têm nome, nem identidade conhecida e, o pior, não têm um passado. Invisíveis para a maioria dos brasileiros, eles estão nos leitos dos hospitais ou presos a cadeiras de rodas, definhando num desespero silencioso. Avenida Guapira, número 2.674, este é um dos endereços que abrigam os esquecidos, doentes que ninguém se lembra mais.
O Hospital Geriátrico e de Convalescentes D. Pedro II, fundado há 97 anos na zona norte de São Paulo, tem 500 internos. Para a maioria destes, o local é a única referência de lar: vivem há quatro, dez, trinta anos em meio às árvores e aos prédios de arquitetura antiga, com pintura desgastada. Todos chegaram transferidos de outras casas de saúde. Alguns têm família e recebem visitas, mas outros foram abandonados por filhos, sobrinhos, mães. Em situação mais difícil estão os internos sem identidade. Pacientes sem memória da própria vida. Ninguém sabe de onde vieram ou se alguém os procura. Sofrem pelas conseqüências de mal de Alzheimer, acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crâniano.
Desde jovem, Lourdes Faustino fugia de casa para morar nas ruas. Epiléptica e deficiente mental, ela sempre voltava à casa da irmã mais velha, Maria Madalena. Em 1999, Lourdes não retornou. Madalena iniciou uma busca que parecia ser em vão. “Todo mundo me dizia que tinha visto ela em algum lugar, mas quando chegava para buscá-la, não a encontrava”, recorda. Mal sabia que sua irmã estava em coma, internada no hospital Dom Pedro II, por causa de um ferimento profundo no crânio, fruto de um disparo de revólver. Depois de meses inerte, Lourdes retomou a consciência, pronunciando algumas palavras, entre elas, o nome da irmã, Madalena. Após nove anos de dúvida, a dona de casa finalmente rec beu notícias concretas. Um vizinho reconheceu Lourdes no Hospital Dom Pedro II e entregou uma foto dela à Madalena. “Reencontrar minha irmã foi uma alegria. Choramos muito”, lembra.
Hoje, Lourdes está impossibilitada de andar. Numa cadeira de rodas, ela guarda marcas da longa passagem pelas ruas. São sinais de agressões espalhados pelas pernas, braços e cabeça. “Polícia, não quero nem saber”, diz Lourdes, em meio a um mar de confusões verbais. As irmãs são companheiras desde os tempos de criança. Madalena sempre zelou pela saúde da irmã especial: “Quando Lourdes tinha alguma recaída, era eu que a levava para o hospital. Nunca bati nela, cuidava com amor”, conta Madalena, “Ela saía de casa e eu ficava muito preocupada. Para mim, sempre tinha alguém judiando dela na rua”, conta.
Até onde a memória alcança
“Adeus, amor” é o único verso da música “E Voltarei”, de Altemar Dutra, que José Joaquim de Moura consegue lembrar. Ex-pedreiro e ex-cozinheiro, está sentado à mesa com colegas – todos em cadeiras de rodas – paralisados olhando um para o rosto do outro. A fala repleta de pausas e suspiros resgata o que ainda lhe resta do passado. Lembra-se de sua irmã Bernadete que era proprietária de um bar, onde Joaquim cozinhava. “Fazia almoço para a peãozada”, recorda o idoso de aparentes 70 anos. “Como o senhor chegou aqui no hospital?”. Pausa. “Não lembro”. “Aqui eu não faço nada. Fico sentado quieto até me recolherem para dormir”, conta.
Joaquim então puxa assunto sobre a vontade de ajudar a fazer uma reforma na casa de uma das funcionárias. Não há sorriso enquanto é fotografado. Até surgir uma nova lembrança. “Minha sobrinha Fabiana se casou com um pastor de uma igreja que ficava na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio”. A assistente social alegra-se pela notícia. “É uma nova pista sobre sua família. Ele nunca tinha dito isso antes”, afirma Eliane Pereira da Silva. O almoço finalmente é servido: arroz, feijão e macarrão.
A partir de pequenas lembranças, assistentes sociais fazem um trabalho de detetive para localizar familiares ou registro das pessoas – quase – esquecidas no mundo. Todas as possibilidades são tentadas: análise de boletim de ocorrências, impressões digitais, publicação das fotografias dos pacientes no site da Secretaria de Saúde. Eliane e Márcia Tomé, assistentes sociais do Dom Pedro II, já presenciaram diversos encontros e desencontros em seus anos de profissão. “Leva tempo até localizar os laços familiares de alguém”, relata Márcia. “A maior parte dos pacientes gosta de reafirmar que têm família, como forma de defesa, se resguardando de um sentimento de exclusão”, analisa Sueli Luciano Pires, diretora do hospital.
Andando pelos corredores do D.Pedro II, os pacientes cobram as assistentes por um sonhado reencontro com familiares: “Meu sobrinho está vindo me buscar?”, pergunta uma senhora de cadeira de rodas. Diante da resposta afirmativa, ela se alegra: “Ai, mas que maravilha!”.
Sem números oficiais
A Secretaria de Saúde de São Paulo disponibilizou na internet imagens e informações de alguns dos pacientes não identificados, com o intuito de ajudar na localização de parentes e conhecidos. Os dados podem ser acessados no endereço http://saude.sp.gov.br/.
Desde que o projeto começou há dois anos, dos 184 pacientes que tiveram as informações divulgadas, 121 foram localizados pelas famílias. Não existe, em todo o País, um levantamento oficial do número de pacientes sem identidade em hospitais. Só no Dom Pedro II são 40 pacientes desconhecidos, e outros 100 identificados que nunca conseguiram localizar seus familiares por conta de falhas na memória. Para o diretor estadual de saúde, Ricardo Tardelli, a ferramenta deve ser utilizada em todo e qualquer caso que o serviço social definir como necessário para a divulgação. “Acho que o site não é usado plenamente, talvez porque ainda não o descobriram”, analisa Tardelli.
Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde de São Paulo, não há projetos de acompanhamento para os pacientes não identificados depois de receberem alta do tratamento. Não há assistência nem mesmo para os que não têm documentos ou não sabem de onde vieram.
-------publicada em Folha Universal
foto: Dárcio de Jesus
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