Considerado o precursor do cinema moderno, Roberto Rossellini foi diretamente responsável pela inspiração de diretores como Glauber Rocha
Por Marília Melhado
Em 1945, Roberto Rossellini consagrou o cinema moderno europeu com a apresentação do que seria um de seus grandes filmes, Roma, Cidade Aberta. Marco inicial da escola do neo-realismo e aclamado em várias partes do mundo, o filme-manifesto narra a resistência italiana durante a ocupação nazista. Vinícius de Moraes, após assistir à estréia do filme em Nova York, escreveu um artigo afirmando que “Rossellini cumpria a missão primacial de qualquer obra de arte que queira permanecer além de seu tempo: revelá-lo com linguagem própria pelo uso de seus mais sentidos temas”.
O cineasta chegou a ser glorificado nos anos 1960 pelo movimento francês Nouvelle Vague, dos diretores Jean-Luc Godard e François Truffaut, como o pioneiro do neo-realismo italiano. ”Apesar de muitas contestações” – como assinala a professora Mariarosaria Fabris, autora do livro O Neo-realismo Cinematográfico Italiano –, Rossellini “inaugura um testemunho cinematográfico do período da segunda-guerra mundial”.
Fabris explica que o papel dos cineastas neo-realistas era de tornarem-se cronistas do pós-guerra e Rossellini, por sua vez, interessava-se especialmente por retratar situações reais dentro da ficção. Seu roteiro era mais livre, a fim de conceder maior liberdade às cenas.
Depois de concluir por sua Trilogia da Guerra (com as produções Roma, Cidade Aberta, Alemanha, ano zero e Paisá), o diretor se mostrou preocupado com ausência de fé em seu povo, após o final do conflito na Europa. O longa-metragem Stromboli, terra de Dio é um dos mais apreciados dessa fase do autor.
Em 1964, Rossellini rompe com o cinema, anunciando a morte do meio. Como grande experimentador, passou a se decidir pela busca do público através da veiculação de filmes exclusivos para televisão. Seguiu-se uma fase espiritualista, em que ele abdicou da obsessão formal por um cinema de conteúdo pedagógico. O cineasta brasileiro Joel Pizzini explica que o diretor passou a ver a salvação da dignidade do cinema por meio da realização de filmes para o grande público, que fizessem grandes metáforas da humanidade. “O longa-metragem Santo Agostinho (filmado para o canal RAI), por exemplo, é cheio de recados sobre a crise ética”.
A escola Rossellini
“Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei realmente o negócio de idéia na cabeça e câmera na mão”, afirmou Glauber Rocha em seu curta-metragem Di, relembrando o primeiro encontro com o italiano Roberto Rossellini. Glauber recorda o encontro com o pai do movimento cinematográfico neo-realista, fazendo uma clara referência à célebre frase sobre o Cinema Novo.
Joel Pizzini, um dos responsáveis pelo resgate da obra de Glauber, explica que, apesar de se declarar essencialmente ligado ao mito do cineasta russo Sergei Eisenstein, Glauber buscou, no autor de Roma, Cidade Aberta, a alusão necessária para o movimento brasileiro encontrar “a voz do homem”. “A influência de Eisenstein se dá pelo tom épico na obra do Glauber, mas a autoridade de Rossellini trouxe o conteúdo humanista”, entende Pizzini.
A inspiração vinha da intenção de trazer um tom reflexivo aos filmes brasileiros. “Para o Cinema Novo, um movimento que se pretendia revolucionário, não poderia deixar de apreciar os exemplos estrangeiros”, afirma Fabris. Em Barravento, primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, esse diálogo foi confirmado, quando o cineasta afirmou que esse filme não era arte e sim um manifesto.
Acerca da influência de forasteiros, o ex-militante do Cinema Novo Cacá Diegues – em uma mesa de debates no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em fevereiro de 2007 – afirmou que essa busca vinha da necessidade de encontrar alguma reminiscência cinematográfica: “As chanchadas, que nós considerávamos paródias de filmes americanos, não poderiam ter nenhum interesse em ser aquilo que nós desejávamos fazer”.
Mesmo o longa-metragem Terra em Transe, famoso pelo seu caráter contestador, seguia uma onda presente no mundo todo. Segundo Pizzini, o neo-realista argumentava que o Cinema Novo deveria estar mais sintonizado com o que estava acontecendo nas ruas, para compreensão das transformações que aquele ano trazia. Rossellini afirmava que, até aquele momento, apenas Jean-Luc Godard conseguiu retratar esse espírito, em A Chinesa e Week End.
Em sua primeira visita ao Brasil, o cineasta italiano, veio tentar filmar - a convite do autor Josué de Castro - uma versão do livro Geografia da Fome. O projeto não vingou devido à negação de apoio do governo do presidente Jânio Quadros. “Eles alegaram que Rossellini era um cineasta superado e não poderia realizar uma película sobre o livro de Josué de Castro”, conta Pizzini. Sobre o fato, o embaixador Arnaldo Carrilho, chefe da difusão cinematográfica no Itamaraty (1962-64), escreveu que Jânio acreditava que uma obra cinematográfica baseada em Geografia da Fome era “detrimental à imagem do Brasil”.
Segundo as pesquisas de Pizzini, o cineasta francês François Truffaut comentou que o pai do neo-realismo tinha um projeto de filme chamado Brasília. Outros registros ainda apontam que Rossellini tinha intenção de filmar Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre – que considerava uma mensagem do Brasil a um mundo dividido por ódios –, e também de adaptar o romance de Jorge Amado, Capitães de Areia. “Ele sempre tentou filmar no Brasil, mas nunca conseguiu. Na verdade, eu suponho que ele gostaria de filmar o projeto de Brasília, como um amálgama de Jorge Amado, Josué de Castro e Gilberto Freyre”.
Durante uma mesa-redonda sobre Pesquisa em Televisão e Cinema na América Latina, Rossellini defendeu seu ponto de vista de produção de obras “inspiracionais” para a TV e irritou-se com os jovens cineastas brasileiros, que, segundo ele, ainda não tinham delimitado uma estratégia de combate. “Ou se luta, ou não se luta. E para lutar é preciso ter o domínio e a atualização das informações. (Os jovens brasileiros) perdem-se numa linguagem ideológica velha, gasta, repetida e sem nenhuma eficácia diante dos verdadeiros problemas políticos e sociais de hoje”, argumentava Rossellini para o escritor brasileiro Mario Chamie. “Rossellini admirava o Cinema Novo, mas achava que o brasileiro ainda estava preso a um certo dirigismo ideológico“, recorda Chamie.
Neste ano, Joel Pizzini termina um curta-metragem sobre a vida e a passagem do cineasta italiano pelo Brasil. A produção já tem nome definido, A morte do pai, e é baseada num relato inédito do rebento Renzo Rossellini. Para o segundo semestre de 2007, também acontecerá uma mostra no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e do Rio de Janeiro, sobre a obra televisiva do mestre neo-realista. Steve Berg, curador da exposição, conta que a data ainda não está definida, mas garante que o evento está sendo organizado com muito esmero, “até pela importância que o Rossellini tem no cinema brasileiro, como idealizador do plano-seqüência (cena longa, sem corte), muito usada por Glauber Rocha”.
-----publicada em Revista Cult.
Por Marília Melhado
Em 1945, Roberto Rossellini consagrou o cinema moderno europeu com a apresentação do que seria um de seus grandes filmes, Roma, Cidade Aberta. Marco inicial da escola do neo-realismo e aclamado em várias partes do mundo, o filme-manifesto narra a resistência italiana durante a ocupação nazista. Vinícius de Moraes, após assistir à estréia do filme em Nova York, escreveu um artigo afirmando que “Rossellini cumpria a missão primacial de qualquer obra de arte que queira permanecer além de seu tempo: revelá-lo com linguagem própria pelo uso de seus mais sentidos temas”.
O cineasta chegou a ser glorificado nos anos 1960 pelo movimento francês Nouvelle Vague, dos diretores Jean-Luc Godard e François Truffaut, como o pioneiro do neo-realismo italiano. ”Apesar de muitas contestações” – como assinala a professora Mariarosaria Fabris, autora do livro O Neo-realismo Cinematográfico Italiano –, Rossellini “inaugura um testemunho cinematográfico do período da segunda-guerra mundial”.
Fabris explica que o papel dos cineastas neo-realistas era de tornarem-se cronistas do pós-guerra e Rossellini, por sua vez, interessava-se especialmente por retratar situações reais dentro da ficção. Seu roteiro era mais livre, a fim de conceder maior liberdade às cenas.
Depois de concluir por sua Trilogia da Guerra (com as produções Roma, Cidade Aberta, Alemanha, ano zero e Paisá), o diretor se mostrou preocupado com ausência de fé em seu povo, após o final do conflito na Europa. O longa-metragem Stromboli, terra de Dio é um dos mais apreciados dessa fase do autor.
Em 1964, Rossellini rompe com o cinema, anunciando a morte do meio. Como grande experimentador, passou a se decidir pela busca do público através da veiculação de filmes exclusivos para televisão. Seguiu-se uma fase espiritualista, em que ele abdicou da obsessão formal por um cinema de conteúdo pedagógico. O cineasta brasileiro Joel Pizzini explica que o diretor passou a ver a salvação da dignidade do cinema por meio da realização de filmes para o grande público, que fizessem grandes metáforas da humanidade. “O longa-metragem Santo Agostinho (filmado para o canal RAI), por exemplo, é cheio de recados sobre a crise ética”.
A escola Rossellini
“Nunca vi ninguém filmar tão rápido, aliás, ali eu saquei realmente o negócio de idéia na cabeça e câmera na mão”, afirmou Glauber Rocha em seu curta-metragem Di, relembrando o primeiro encontro com o italiano Roberto Rossellini. Glauber recorda o encontro com o pai do movimento cinematográfico neo-realista, fazendo uma clara referência à célebre frase sobre o Cinema Novo.
Joel Pizzini, um dos responsáveis pelo resgate da obra de Glauber, explica que, apesar de se declarar essencialmente ligado ao mito do cineasta russo Sergei Eisenstein, Glauber buscou, no autor de Roma, Cidade Aberta, a alusão necessária para o movimento brasileiro encontrar “a voz do homem”. “A influência de Eisenstein se dá pelo tom épico na obra do Glauber, mas a autoridade de Rossellini trouxe o conteúdo humanista”, entende Pizzini.
A inspiração vinha da intenção de trazer um tom reflexivo aos filmes brasileiros. “Para o Cinema Novo, um movimento que se pretendia revolucionário, não poderia deixar de apreciar os exemplos estrangeiros”, afirma Fabris. Em Barravento, primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, esse diálogo foi confirmado, quando o cineasta afirmou que esse filme não era arte e sim um manifesto.
Acerca da influência de forasteiros, o ex-militante do Cinema Novo Cacá Diegues – em uma mesa de debates no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em fevereiro de 2007 – afirmou que essa busca vinha da necessidade de encontrar alguma reminiscência cinematográfica: “As chanchadas, que nós considerávamos paródias de filmes americanos, não poderiam ter nenhum interesse em ser aquilo que nós desejávamos fazer”.
Mesmo o longa-metragem Terra em Transe, famoso pelo seu caráter contestador, seguia uma onda presente no mundo todo. Segundo Pizzini, o neo-realista argumentava que o Cinema Novo deveria estar mais sintonizado com o que estava acontecendo nas ruas, para compreensão das transformações que aquele ano trazia. Rossellini afirmava que, até aquele momento, apenas Jean-Luc Godard conseguiu retratar esse espírito, em A Chinesa e Week End.
Em sua primeira visita ao Brasil, o cineasta italiano, veio tentar filmar - a convite do autor Josué de Castro - uma versão do livro Geografia da Fome. O projeto não vingou devido à negação de apoio do governo do presidente Jânio Quadros. “Eles alegaram que Rossellini era um cineasta superado e não poderia realizar uma película sobre o livro de Josué de Castro”, conta Pizzini. Sobre o fato, o embaixador Arnaldo Carrilho, chefe da difusão cinematográfica no Itamaraty (1962-64), escreveu que Jânio acreditava que uma obra cinematográfica baseada em Geografia da Fome era “detrimental à imagem do Brasil”.
Segundo as pesquisas de Pizzini, o cineasta francês François Truffaut comentou que o pai do neo-realismo tinha um projeto de filme chamado Brasília. Outros registros ainda apontam que Rossellini tinha intenção de filmar Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre – que considerava uma mensagem do Brasil a um mundo dividido por ódios –, e também de adaptar o romance de Jorge Amado, Capitães de Areia. “Ele sempre tentou filmar no Brasil, mas nunca conseguiu. Na verdade, eu suponho que ele gostaria de filmar o projeto de Brasília, como um amálgama de Jorge Amado, Josué de Castro e Gilberto Freyre”.
Durante uma mesa-redonda sobre Pesquisa em Televisão e Cinema na América Latina, Rossellini defendeu seu ponto de vista de produção de obras “inspiracionais” para a TV e irritou-se com os jovens cineastas brasileiros, que, segundo ele, ainda não tinham delimitado uma estratégia de combate. “Ou se luta, ou não se luta. E para lutar é preciso ter o domínio e a atualização das informações. (Os jovens brasileiros) perdem-se numa linguagem ideológica velha, gasta, repetida e sem nenhuma eficácia diante dos verdadeiros problemas políticos e sociais de hoje”, argumentava Rossellini para o escritor brasileiro Mario Chamie. “Rossellini admirava o Cinema Novo, mas achava que o brasileiro ainda estava preso a um certo dirigismo ideológico“, recorda Chamie.
Neste ano, Joel Pizzini termina um curta-metragem sobre a vida e a passagem do cineasta italiano pelo Brasil. A produção já tem nome definido, A morte do pai, e é baseada num relato inédito do rebento Renzo Rossellini. Para o segundo semestre de 2007, também acontecerá uma mostra no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e do Rio de Janeiro, sobre a obra televisiva do mestre neo-realista. Steve Berg, curador da exposição, conta que a data ainda não está definida, mas garante que o evento está sendo organizado com muito esmero, “até pela importância que o Rossellini tem no cinema brasileiro, como idealizador do plano-seqüência (cena longa, sem corte), muito usada por Glauber Rocha”.
-----publicada em Revista Cult.
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