Aos 70 anos, Zé Celso desafia os valores e a moral com seu alegórico teatro dionisíaco.
Por Marília Melhado
Muito benquisto, principalmente pelos taxistas da região do Bixiga, em São Paulo, Zé Celso é mais do que uma figura emblemática. "Ele tem o Q.I. acima da média, é um gênio", afirma um motorista, "o cara é amigo do Suplicy e do Caetano Veloso, consegue falar com o presidente a hora que ele quiser", garante.
Mais de quatro décadas de espetáculos e polêmicas marcam a história de um dos mais famosos grupos teatrais do Brasil. Capitaneado pelo diretor Zé Celso Martinez Côrrea, o Teatro Oficina deixa marcas por onde passa. "Os Sertões", clássico de Euclides da Cunha, é a atual menina dos olhos do diretor. Apresentações do espetáculo acontecem desde 2001, passando até mesmo por palcos estrangeiros como o do Volksbühne, em Berlim.
A adaptação do livro foi dividida em 5 partes: A Terra, O homem parte I, O Homem parte II, A Luta parte I e A Luta parte II. Somadas, o espetáculo resulta em mais de 26 horas. De quarta à domingo são ensaios e espetáculos das 17h às 00h. Eventualmente, o ensaio do Oficina pode chegar até às 5 da manhã. Zé tem consciência de sua exigência e conta que muitos atores abdicaram de seus antigos trabalhos para se dedicarem ao Oficina em tempo integral. "É um processo muito cruel. Exige muita concentração e dedicação ´transumana´". O grupo atualmente conta com atores que antes se dedicavam ao ensino da capoeira ou à prática da medicina.
Durante o mês de aniversário de Zé Celso - que completa 70 anos em 2007 -, seu teatro hoje também conhecido como Uzyna Uzona, se concentra na gravação de um longa-metragem. Zé explica que seu grupo não poderia perder a chance de documentar essa obra para o mundo. "A revolução digital, potencializa o ator, o teatro e a peça. É um momento importante, nobre e bonito", resume.
Chafurdando na vida
Quando se está do lado de fora do Oficina, esperando o portão (e não a habitual cortina) se abrir, ouve-se tambores, cantorias e um certo frio na barriga arrebata o espectador, premeditando o baque que irá suceder. De repente, um estrondo. A porta se abre e corpos insanos se espalham pelo lugar num tipo de apoteose transviada. "Atoar para poder voar", (atoar mesmo, não atuar!), é o mantra repetido freneticamente. O teatro invade a calçada e a rua Jaceguai, enquanto o público adentra o universo que perverte a ordem e as regras da sociedade.
Louvações aos orixás, deuses e personagens. Dionísio, Oswald de Andrade, Iemanjá. São inúmeras as referências culturais impressas no cotidiano daquele espaço. O espectador é convidado a participar das ações cênicas como saída de suas lástimas, conforme expõe Zé Celso: "Pessoas que são marcadas no processo social, vão ao teatro não para se lastimarem ou submeterem. Ali, em vez de recalcados, seus tabus são coroados e transformados em totens", garante.
Não só o público é exposto a um novo processo de experiência de vida. Zé acredita que o ator precisa se colocar como sujeito e objeto de experiências distintas. "É preciso estar disposto a passar por um processo de 'descabaçamento'. Você tem que chafurdar na vida e experimentar de tudo para poder exprimir alguma coisa a mais".
Ericson Pires, em sua tese de mestrado pela PUC-Rio, analisa a trajetória desta Uzyna de Corpos, e esclarece que assim como são como cultos dionisíacos que ameaçavam a ordem e os valores da pólis grega, "a experiência teatral, neste sentido, se aproxima da carnavalização que irrompe e rompe com o cotidiano da cidade. Sendo assim, o teatro se torna o espaço de indisciplina dos devires corpos em oposição complementar a vida ordeira das cidades".
A vida dentro e fora da Uzyna
"O Oficina não é uma família", expressa Zé Celso, quando questionado ao modo como o grupo se relaciona. "Procuro que seja uma associação de artistas e técnicos do Teatro Oficina - Uzyna Uzona. Mesmo que as pessoas tenham relações sexuais e afetivas entre elas, não é uma família. Uma família é uma coisa muito fechada. Já uma associação, é aberta a outras pessoas que participarão por um tempo, depois se vão", pontua.
O cotidiano dos atores já é amplamente conhecido, principalmente por quem freqüenta as redondezas. O teatro tem um sistema de permuta com o restaurante Piolin, habitual recinto da classe artística. Em dias de comemoração, o grupo também pode ser encontrado no tradicional Sujinho, vulgo "bar das putas". As noites de Zé, dentro e fora desses recintos, são sempre regadas pelo seu combustível predileto, o vinho. Mas, garante que os mais jovens costumam freqüentar mais festas do que ele, "preciso poupar as minhas energias".
Claro que nem todo mundo vê Zé Celso com bons olhos, e ele também não faz questão de agradar. Bárbara Heliodora, diretora e crítica de teatro, é um de seus desafetos. O diretor fala que Heliodora é uma empregada da burguesia, "Ela é o que se chamava antigamente de chaperonne, uma mulher que cuidava das crianças, lhes ensinando moral e bons costumes e as levava para espetáculos recomendados pela igreja". Bárbara Heliodora, quando procurada para falar de Zé Celso, foi taxativa em seu e-mail e respondeu que uma entrevista sobre o assunto seria "totalmente impossível".
Zé lembra que existem grandes estudiosos do teatro que sabem jogar luz em seu trabalho, vendo coisas que ele mesmo não percebia. Mas que outros críticos não admitem a existência de teatros como o Oficina, servem à classe alta, garantindo peças onde não há riscos de se encontrar cadeiras desconfortáveis ou cenas de nudismo. "É um prolongamento da novela. Um teatro feito com poucos atores, em peças de costumes para a terceira idade e que cobram muito caro. Tudo em palco italiano. Um teatro que não tem importância cultural ou deixa vestígios. Pode ser visto por milhões de pessoas, e não impressiona culturalmente a cidade, não toca em nada".
----- publicada em site Revista Cult
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